Ano do Centenário da Imagem da Padroeira de Lagoinha
Imaculada Conceição de Maria
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A esta
criatura dileta entre todas, superior a tudo quanto foi criado, e inferior
somente à humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus conferiu um
privilégio incomparável, que é a Imaculada Conceição.
A santa intransigência, um aspecto da Imaculada
Conceição
O vocabulário humano não é
suficiente para exprimir a santidade de Nossa Senhora. Na ordem natural, os
Santos e os Doutores A compararam ao sol. Mas se houvesse algum astro inconcebivelmente
mais brilhante e mais glorioso do que o sol, é a esse que Acomparariam. E
acabariam por dizer que este astro daria d'Ela uma imagem pálida, defeituosa,
insuficiente. Na ordem moral, afirmam que Ela transcendeu de muito todas as
virtudes, não só de todos os varões e matronas insignes da Antiguidade, mas - o
que é incomensuravelmente mais - de todos os Santos da Igreja Católica.
Imagine-se uma criatura tendo
todo o amor de São Francisco de Assis, todo o zelo de São Domingos de Gusmão,
toda a piedade de São Bento, todo o recolhimento de Santa Teresa, toda a
sabedoria de São Tomás, toda a intrepidez de Santo Inácio, toda a pureza de São
Luiz Gonzaga, a paciência de um São Lourenço, o espírito de mortificação de
todos os anacoretas do deserto: ela não chegaria aos pés de Nossa Senhora.
Mais ainda. A glória dos Anjos
é algo de incompreensível ao intelecto humano. Certa vez, apareceu a um santo o
seu Anjo da Guarda. Tal era sua glória, que o Santo pensou que se tratasse do
próprio Deus, e se dispunha a adorá-lo, quando o Anjo revelou quem era. Ora, os
Anjos da Guarda não pretendem habitualmente às mais altas hierarquias celestes.
E a glória de Nossa Senhora está incomensuravelmente acima da de todos os coros
angélicos.
Poderia haver contraste maior
entre esta obra-prima da natureza e da graça, não só indescritível mas até
inconcebível, e o charco de vícios e misérias, que era o mundo antes de Cristo?
A esta criatura dileta entre todas, superior a tudo quanto foi criado, e
inferior somente à humanidade santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus
conferiu um privilégio incomparável, que é a Imaculada Conceição.
Em virtude do pecado original, a inteligência humana se tornou sujeita a
errar, a vontade ficou exposta a desfalecimentos, a sensibilidade ficou presa
das paixões desordenadas, o corpo por assim dizer foi posto em revolta contra a
alma.
Ora, pelo privilégio de sua Conceição Imaculada, Nossa Senhora foi
preservada da mancha do pecado original desde o primeiro instante de seu ser.
E, assim, n'Ela tudo era harmonia profunda, perfeita, imperturbável. O
intelecto jamais exposto a erro, dotado de um entendimento, uma clareza, uma
agilidade inexprimível, iluminado pelas graças mais altas, tinha um
conhecimento admirável das coisas do Céu e da Terra.
A vontade, dócil em tudo ao intelecto, estava inteiramente voltada para
o bem, e governava plenamente a sensibilidade, que jamais sentia em si, nem
pedia à vontade algo que não fosse plenamente justo e conforme à razão.
Imagine-se uma vontade naturalmente tão perfeita, uma sensibilidade
naturalmente tão irrepreensível, esta e aquela enriquecidas e
super-enriquecidas de graças inefáveis, perfeitissimamente correspondidas a
todo o momento, e se pode ter uma idéia do que era a Santíssima Virgem. Ou
antes se pode compreender por que motivo nem sequer se é capaz de formar uma
ideia do que a Santíssima Virgem era.
"Inimicitias Ponam"
Dotada de tantas luzes naturais e sobrenaturais, Nossa Senhora conheceu
por certo, em seus dias, a infâmia do mundo. E com isto amargamente sofreu.
Pois quanto maior é o amor à virtude, tanto maior é o ódio ao mal.
Ora, Maria Santíssima tinha em si abismos de amor à virtude, e,
portanto, sentia forçosamente em si abismos de ódio ao mal. Maria era pois
inimiga do mundo, do qual viveu alheia, segregada, sem qualquer mistura nem
aliança, voltada unicamente para as coisas de Deus.
O mundo, por sua vez, parece não ter compreendido nem amado Maria. Pois
não consta que lhe tivesse tributado admiração proporcionada à sua formosura
castíssima, à graça nobilíssima, a seu trato dulcíssimo, à sua caridade sempre
exorável, acessível, mais abundante do que as águas do mar e mais suave do que
o mel.
E como não haveria de ser assim? Que compreensão poderia haver entre
Aquela que era toda do Céu, e aqueles que viviam só para a Terra? Aquela que
era toda fé, pureza, humildade, nobreza, e aqueles que eram todos idolatria,
ceticismo, heresia, concupiscência, orgulho, vulgaridade? Aquela que era toda
sabedoria, razão, equilíbrio, senso perfeito de todas as coisas, temperança
absoluta e sem mácula nem sombra, e aqueles que eram todo desmando,
extravagância, desiquilíbrio, senso errado, cacofônico, contraditório, berrante
a respeito de tudo, e intemperança crônica, sistemática, vertiginosamente
crescente em tudo? Aquela que era a fé levada por uma lógica adamantina e
inflexível a todas as suas consequências, e aqueles que eram o erro levado por
uma lógica infernalmente inexorável, também a suas últimas consequências? Ou
aqueles que, renunciando a qualquer lógica, viviam voluntariamente num pântano
de contradições, em que todas as verdades se misturavam e se poluíam na
monstruosa interpenetração de todos os erros que lhe são contrários?
"Imaculado" é uma palavra negativa. Ela significa
etimologicamente a ausência de mácula, e pois de todo e qualquer erro por menos
que seja, de todo e qualquer pecado por mais leve e insignificante que pareça.
É a integridade absoluta na fé e na virtude. E, portanto, a intransigência
absoluta, sistemática, irredutível, a aversão completa, profunda, diametral a
toda a espécie de erro ou de mal. A santa intransigência na verdade e no bem, é
a ortodoxia, a pureza, enquanto em oposição à heterodoxia e ao mal. Por amar a
Deus sem medida, Nossa Senhora correspondentemente amou de todo o Coração tudo
quanto era de Deus. E porque odiou sem medida o mal, odiou sem medida Satanás,
suas pompas e suas obras, o demônio e a carne. Nossa Senhora da Conceição é
Nossa Senhora da santa intransigência.
Verdadeiro ódio, verdadeiro amor
Por isto, Nossa Senhora rezava sem cessar. E segundo tão razoavelmente
se crê, Ela pedia o advento do Messias, e a graça de ser uma serva daquele que
fosse escolhida para Mãe de Deus.
Pedia o Messias, para que viesse Aquele que poderia fazer brilhar
novamente a justiça na face da Terra, para que se levantasse o Sol divino de
todas as virtudes, espancando por todo o mundo as trevas da impiedade e do
vício.
Nossa Senhora desejava, é certo, que os justos vivendo na Terra
encontrassem na vinda do Messias a realização de seus anseios e de suas
esperanças, que os vacilantes se reanimassem, e que de todos os pauis, de todos
os abismos, almas tocadas pela luz da graça, levantassem voo para os mais altos
píncaros da santidade. Pois estas são por excelência as vitórias de Deus, que é
a Verdade e o Bem, e as derrotas do demônio, que é o chefe de todo erro e de
todo o mal. A Virgem queria a glória de Deus por essa justiça que é a
realização na Terra da ordem desejada pelo Criador.
Mas, pedindo a vinda do Messias, Ela não ignorava que este seria a Pedra
de escândalo, pela qual muitos se salvariam e muitos receberiam também o
castigo de seu pecado. Este castigo do pecador irredutível, este esmagamento do
ímpio obcecado e endurecido, Nossa Senhora também o desejou de todo o Coração,
e foi uma das consequências da Redenção e da fundação da Igreja, que Ela
desejou e pediu como ninguém. Ut inimicos Santae Ecclesiae Humiliare digneris,
Te rogamus audi nos, canta a Liturgia. E antes da Liturgia por certo o Coração
Imaculado de Maria já elevou a Deus súplica análoga, pela derrota dos ímpios
irredutíveis. Admirável exemplo de verdadeiro amor, de verdadeiro ódio.
Onipotência suplicante
Deus quer as obras. Ele fundou a Igreja par ao apostolado. Mas acima de
tudo quer a oração. Pois a oração é a condição da fecundidade de todas as
obras. E quer como fruto da oração a virtude.
Rainha de todos os apóstolos, Nossa Senhora e entretanto principalmente
o modelo das almas que rezam e se santificam, a estrela podar de toda meditação
e vida interior. Pois, dotada de virtude imaculada, Ela dez sempre o que era
mais razoável, e se nunca sentiu em si as agitações e as desordens das almas
que só amam a ação e a agitação, nunca experimentou em si, tampouco, as apatias
e as negligências das almas frouxas que fazem da vida interior um pára-vento a
fim de disfarçar sua indiferença pela causa da Igreja. Seu afastamento do mundo
não significou um desinteresse pelo mundo. Quem fez mais pelos ímpios e pelos
pecadores do que Aquela que, para os salvar, voluntariamente consentiu na
imolação crudelíssima de seu Filho infinitamente inocente e santo? Quem fez
mais pelos homens, do que Aquela que consentiu se realizasse em seus dias a
promessa da vinda do Salvador?
Mas, confiante sobretudo na oração e na vida interior, não nos deu a
Rainha dos Apóstolos uma grande lição de apostolado, fazendo de uma e outra o
seu principal instrumento de ação?
Aplicação a nossos dias
Tanto valem aos olhos de Deus as almas que, como Nossa Senhora, possuem
o segredo do verdadeiro amor e do verdadeiro ódio, da intransigência perfeita,
do zelo incessante, do completo espírito de renúncia, que propriamente são elas
que podem atrair para o mundo as graças divinas.
Estamos numa época parecida com a da vinda de Jesus Cristo à Terra. Em
1928 escreveu o Santo Padre Pio XI que "o espetáculo das desgraças
contemporâneas é de tal maneira aflitivo, que se poderia ver nele a aurora
deste início de dores que trará o Homem do pecado, elevando-se contra tudo
quanto é chamado Deus e recebe a honra de um culto" (Enc. Miserentissimus
Redemptor, de 8 de maio de 1928).
Que diria ele hoje? E a nós, que nos compete fazer? Lutar em todos os
terrenos permitidos, com todas as armas lícitas. Mas antes de tudo, acima de
tudo, confiar na vida interior e na oração. É o grande exemplo de Nossa
Senhora.
O exemplo de Nossa Senhora, só com o auxílio de Nossa Senhora se pode
imitar. E o auxílio de Nossa Senhora só com a devoção a Nossa Senhora se pode
conseguir. Ora, a devoção a Maria Santíssima no que de melhor pode consistir,
do que em lhe pedirmos não só o amor a Deus e o ódio ao demônio, mas aquela
santa inteireza no amor ao bem e no ódio ao mal, em uma palavra aquela santa intransigência,
que tanto refulge em sua Imaculada Conceição?
* * * * * * *
A Imaculada Conceição da Maria Virgem - singular privilégio concedido
por Deus, desde toda a eternidade, Àquela que seria Mãe de seu Filho Unigênito
- preside a todos os louvores que Lhe rendemos na recitação de seu Pequeno
Ofício. Assim, parece-nos oportuno percorrer rapidamente a história dessa
"piedosa crença" que atravessou os séculos, até encontrar, nas
infalíveis palavras de Pio IX, sua solene definição dogmática.
Onze séculos de tranqüila aceitação da
"piedosa crença"
Os mais antigos Padres da Igreja, amiúde se expressam em termos que
traduzem sua crença na absoluta imunidade do pecado, mesmo o original,
concedida à Virgem Maria. Assim, por exemplo, São Justino, Santo Irineu,
Tertuliano, Firmio, São Cirilo de Jerusalém, Santo Epifânio, Teódoro de Ancira,
Sedulio e outros comparam Maria Santíssima com Eva antes do pecado. Santo
Efrém, insigne devoto da Virgem, A exalta como tendo sido "sempre, de
corpo e de espírito, íntegra e imaculada". Para Santo Hipólito Ela é um
"tabernáculo isento de toda corrupção". Orígenes A aclama
"imaculada entre imaculadas, nunca afetada pela peçonha da serpente".
Por Santo Ambrósio é Ela declarada "vaso celeste, incorrupta, virgem imune
por graça de toda mancha de pecado". Santo Agostinho afirma, disputando contra
Pelágio, que todos os justos conheceram o pecado, "menos a Santa Virgem
Maria, a qual, pela honra do Senhor, não quero que entre nunca em questão
quando se trate de pecados".
Cedo começou a Igreja - com primazia da Oriental - a comemorar em suas
funções litúrgicas a imaculada conceição de Maria. Passaglia, no seu De
Inmaculato Deiparae Conceptu, crê que a princípios do Século V já se celebrava
a festa da Conceição de Maria (com o nome de Conceição de Sant'Ana) no
Patriarcado de Jerusalém. O documento fidedigno mais antigo é o cânon de dita
festa, composto por Santo André de Creta, monge do mosteiro de São Sabas,
próximo a Jerusalém, o qual escreveu seus hinos litúrgicos na segunda metade do
século VII.
Tampouco faltam autorizadíssimos testemunhos dos Padres da Igreja,
reunidos em Concílio, para provar que já no século VII era comum e recebida por
tradição a piedosa crença, isto é, a devoção dos fiéis ao grande privilégio de
Maria (Concílio de Latrão, em 649, e Concílio Constantinopolitano III, em 680).
Em Espanha, que se gloria de ter recebido com a fé o conhecimento deste
mistério, comemora-se sua festa desde o século VII. Duzentos anos depois, esta
solenidade aparece inscrita nos calendários da Irlanda, sob o título de
"Conceição de Maria".
Também no século IX era já celebrada em Nápoles e Sicílias, segundo
consta do calendário gravado em mármore e editado por Mazzocchi em 1744. Em
tempos do Imperador Basílio II (976-1025), a festa da "Conceição de
Sant'Ana" passou a figurar no calendário oficial da Igreja e do Estado, no
Império Bizantino.
No século XI parece que a comemoração da Imaculada estava estabelecida
na Inglaterra, e, pela mesma época, foi recebida em França. Por uma escritura
de doação de Hugo de Summo, consta que era festejada na Lombardia (Itália) em
1047. Certo é também que em fins do século XI, ou princípios do XII,
celebrava-se em todo o antigo Reino de Navarra.
Séculos XII-XIII: Oposições
No mesmo século XII começou a ser combatido, no Ocidente, este grande
privilégio de Maria Santíssima. Tal oposição haveria ainda de ser mais
acentuada e mais precisa na centúria seguinte, no período clássico da
escolástica. Entre os que puseram em dúvida a Imaculada Conceição, pela pouca
exatidão de idéias à matéria encontram-se doutos e virtuosos varões, como, por
exemplo, São Bernardo, São Boaventura, Santo Alberto Magno e o angélico São
Tomás de Aquino.
Século XIV: Escoto e a reação a favor do dogma
O combate a esta augusta prerrogativa da Virgem não fez senão acrisolar
o ânimo de seus partidários. Assim, o século XIV se inicia com uma grande
reação a favor da Imaculada, na qual se destacou, como um de seus mais
ardorosos defensores, o beato espanhol Raimundo Lulio.
Outro dos primeiros e mais denodados campeões da Imaculada Conceição foi
o venerável João Duns Escoto (seu país natal é incerto: Escócia,
Inglaterra ou Irlanda; morreu em 1308), glória da Ordem dos Menores
Franciscanos, o qual, depois de bem fixar os verdadeiros termos da questão,
estabeleceu com admirável clareza os sólidos fundamentos para desvanecer as
dificuldades que os contrários opunham à singular prerrogativa mariana.
Sobre o impulso dado por Escoto à causa da Imaculada Conceição, existe
uma tocante legenda. Teria ele vindo de Oxford a Paris, precisamente para fazer
triunfar o imaculatismo. Na Universidade da Sorbonne, em 1308, sustentou uma
pública e solene disputa em favor do privilégio da Virgem.
No dia dessa grande ato, Escoto, quando chegou ao local da discussão,
prosternou-se diante de uma imagem de Nossa Senhora que se encontrava em sua
passagem, e lhe dirigiu esta prece: "Dignare me laudare te, Virgo sacrata:
da mihi virtutem contra hostes tuos". A Virgem, para mostrar seu
contentamento com esta atitude inclinou a cabeça - postura que, a partir de
então, Ela teria conservado...
Depois de Escoto, a solução teológica das dificuldades levantadas contra
a Imaculada Conceição se tornou casa dia mais clara e perfeita, com o que seus
defensores se multiplicaram prodigiosamente. Em seu favor escreveram inúmeros
filhos de São Francisco, entre os quais se podem contar os franceses Aureolo
(m. em 1320) e Mayron (m. em 1325), o escocês Bassolis e o espanhol Guillermo
Rubión. Acredita-se que esses ardorosos propagandistas do santo mistério
estejam na origem de sua celebração em Portugal, nos primórdios do século XIV.
O documento mais antigo da instituição da festa da Imaculada nesse país
é um decreto do Bispo de Coimbra, D. Raimundo Evrard, datado de 17 de Outubro
de 1320. A par dos doutores franciscanos, cumpre ainda mencionar, entre os
defensores da Imaculada Conceição nos séculos XIV-XV, o carmelita João Bacon
(m. em 1340), o agostiniano Tomás de Estrasburgo, Dionísio, o Cartuxo (m. em
1471), Gerson (m. em 1429), Nicolau de Cusa (m. em 1464) e outros muitos
esclarecidos teólogos pertencentes a diversas escolas e nações.
Séculos XV-XVI: acirradas disputas
Em meados do século XV, a Imaculada Conceição foi objeto de renhido
combate durante o Concílio de Basiléia, resultando num decreto de definição sem
valor dogmático, posto que este sínodo perdeu a legitimidade ao se desligar do
Papa.
Entretanto, crescia cada dia mais o número das cidades, nações e
colégios que celebravam oficialmente a festa da Imaculada. E com tal fervor,
que nas cortes da Catalunha, reunidas em Barcelona entre 1454 e 1458,
decretou-se pena de perpétuo desterro para quem combatesse o santo privilégio.
O autêntico Magistério da Igreja não tardou a dar satisfação aos
defensores do dogma e da festa. Pela bula Cum proeexcelsa, de 27 de Fevereiro
de 1477, o Papa Sixto IV aprovou a festa da Conceição de Maria, enriqueceu-a de
indulgências semelhantes às festas do Santíssimo Sacramento e autorizou ofício
e missa especial para essa solenidade.
Pelos fins do século XV, porém, a disputa em torno da Imaculada
Conceição de tal maneira acirrou os ânimos dos contendores, que o mesmo Papa
Sixto IV se viu obrigado a publicar, em data de 4 de setembro de 1483, a
Constituição Grave Nimis, proibindo sob pena de excomunhão que os de uma parte
chamassem hereges aos da outra.
Por essa época, festejavam a Imaculada célebres universidades, como as
de Oxford, de Cambridge e a de Paris, a qual, em 1497, instituiu para todos os
seus doutores o juramento e o voto de defender perpetuamente o mistério da
Imaculada Conceição, excluindo de seus quadros quem não os fizesse. De modo
semelhante procederam as universidades de Colônia (em 1499), de Magúncia (em
1501) e a de Valência (em 1530).
No Concílio de Trento (1545-1563) se ofereceu nova ocasião para denodado
combate entre os dois partidos. Sem proferir uma definição dogmática da
Imaculada Conceição, esta assembléia confirmou de modo solene as decisões de
Sixto IV. A 15 de Junho de 1546, na sessão V, em seguida aos cânones sobre o
pecado original, acrescentaram-se estas significativas palavras: "O
sagrado Concílio declara que não é sua intenção compreender neste decreto, que
trata do pecado original, a Bem-aventurada e imaculada Virgem Maria, Mãe de
Deus, mas que devem observar-se as constituições do Papa Sixto IV, de feliz
memória, sob as penas que nelas se cominam e que este Concílio renova".
Por esse tempo, começaram a reforçar as fileiras dos defensores da
Imaculada Conceição os teólogos da recém-fundada Companhia de Jesus, entre os
quais não se achou um só de opinião contrária. Aliás, pelos primeiros
missionários jesuítas no Brasil temos notícia de que, já em 1554, celebrava-se
o singular privilégio mariano em nosso País. Além da festa comemorada no dia 8
de Dezembro, capelas, ermidas e igrejas eram edificadas sob o título de Nossa
Senhora da Conceição.
Entretanto, a piedosa crença ainda suscitava polêmicas, coibidas pela
intervenção do Sumo Pontífice. Assim, em outubro de 1567, São Pio V, condenando
uma proposição de Bayo que afirmava ter morrido Nossa Senhora em conseqüência
do pecado herdado de Adão, proibiu novamente a disputa acerca do augusto
privilégio da Virgem.
Séculos XVII e seguintes: consolidação da
"piedosa crença"
No século XVII, o culto da Imaculada Conceição conquista Portugal
inteiro, desde os reis e os teólogos até os mais humildes filhos do povo. A 9
de Dezembro de 1617, a Universidade de Coimbra, reunida em claustro pleno,
resolve escrever ao Papa manifestando-lhe a sua crença na imaculabilidade de
Maria.
Naquele mesmo ano, Paulo V, decretou que ninguém se atrevesse a ensinar
publicamente que Maria Santíssima teve pecado original. Semelhante foi a
atitude de Gregório XV, em 1622.
Por essa época, a Universidade de Granada se obrigou a defender a
Imaculada Conceição com voto de sangue, quer dizer, comprometendo-se a dar a
vida e derramar o sangue, se necessário fosse, na defesa deste mistério.
Magnífico exemplo que foi imitado, sucessivamente, por grande número de
cabidos, cidades, reinos e ordens militares.
A partir do século XVII também foram se multiplicando as corporações e
sociedades, tanto religiosas como civis, e até mesmo estados, que adotaram por
padroeira à Virgem no mistéiro de sua Imaculada Conceição.
Digna de particular referência é a iniciativa de D. João IV, Rei de
Portugal, proclamando Nossa Senhora da Conceição padroeira de seus "Reinos
e Senhorios", ao mesmo tempo que jura defendê-La até à morte, segundo se
lê na provisão régia de 25 de março de 1646. A partir deste momento, em homenagem
à sua Imaculada Soberana, nunca mais os reis portugueses puseram a coroa na
cabeça.
Em 1648, aquele mesmo Monarca mandou cunhar moedas de ouro e prata. Foi
com estas que se pagou o primeiro feudo a Nossa Senhora. Com o nome de
Conceição, tais moedas tinham no anverso a legenda: JOANNES IIII, D. G.
PORTUGALIAE ET ALBARBIAE REX, a Cruz de Cristo e as armas lusitanas. No
reverso: a imagem da Senhora da Conceição sobre o globo e a meia lua, com a
data de 1648 e, nos lados, o sol, o espelho, o horto, a casa de ouro, a fonte
selada e a Arca da Aliança, símbolos bíblicos da Santíssima Virgem.
Outro decreto de D. João IV, assinado em 30 de junho de 1654, ordenava
que "em todas as portas e entradas das cidades, vilas e lugares de seus
Reinos", fosse colocada uma lápide cuja inscrição exprimisse a fé do povo
português na imaculada Conceição de Maria.
Igualmente a partir do século XVII imperadores, reis e as cortes dos
reinos começaram a pedir com admirável constância, e com uma insistência de que
há poucos exemplos na História, a declaração dogmática da Imaculada Conceição.
Pediram-na a Urbano VIII (m. em 1644) o Imperador Fernando II da
Áustria; Segismundo, Rei da Polônia; Leopoldo, Arquiduque do Tirol; o eleitor
de Magúncia; Ernesto de Baviera, eleitor de Colônia.
O mesmo Urbano VIII a pedidos do Duque de Mântua e de outros príncipes,
criou a ordem militar dos Cavaleiros da Imaculada Conceição, aprovando ao mesmo
tempo seus estatutos. Por devoção à Virgem Imaculada, quis ele ser o primeiro a
celebrar o augusto Sacrifício na primeira igreja edificada em Roma sob o título
da Imaculada, para uso dos menores capuchinhos de São Francisco.
Porém, o ato mais importante emanado da Santa Sé, no século XVII, em
favor da Imaculada Conceição, foi a bula Sollicitude omnium Ecclesiarum, do
Papa Alexandre VII, em 1661. Neste documento, escrito de sua própria mão, o
Pontífice renova e ratifica as constituições em favor de Maria Imaculada, ao
mesmo tempo que impõe gravíssimas penas a quem sustentar e ensinar opinião
contrária aos ditos decretos e constituições. Esta bula memorável precede
diretamente, sem outro decreto intermediário, a bula decisiva de Pio IX.
Em 1713, Felipe V de Espanha e as Cortes de Aragão e Castela pediram a
solene definição a Clemente XI. E o mesmo Rei, com quase todos os Bispos
espanhóis, as universidades e Ordens religiosas, a solicitaram a Clemente XII,
em 1732.
No pontificado de Gregório XVI, e nos primeiros anos de Pio IX, elevaram-se
à Sé Apostólica mais de 220 petições de Cardeais, Arcebispos e Bispos (sem
contar as dos cabidos e ordens religiosas) para que se fizesse a definição
dogmática.
O triunfo da Imaculada
Conceição
Enfim, chegado era o tempo. Em
2 de fevereiro de 1849, Pio IX, desterrado em Gaeta, escreveu a todos os
Patriarcas Primazes, Arcebispos e Bispos do orbe a Encíclica Ubi primum,
questionando-lhes acerca da devoção de seu clero e de seus povos ao mistério da
Imaculada Conceição, e seu desejo de vê-lo definido.
De um total de 750 Cardeais,
Bispos e vigários apostólicos que em seu seio contava então a Igreja, mais de
600 responderam ao Sumo Pontífice. Levando-se em conta as dioceses que estariam
vacantes, os prelados enfermos e as respostas perdidas, pode-se dizer que todos
atenderam à solicitação do Papa, manifestando unanimemente que a fé de seu povo
era completamente favorável à Imaculada Conceição, e apenas cinco se diziam
duvidosos quanto à oportunidade de uma declaração dogmática. Afirmara-se a
crença universal da Igreja. Roma iria falar, a causa estava julgada.
Agora - são palavras de uma
testemunha da bela festa de 8 de dezembro de 1854 - transportemo-nos ao augusto
templo do Chefe dos Apóstolos (Basílica de São Pedro de Roma). Nas suas amplas
naves se comprime e se confunde uma imensa multidão impaciente, porém
recolhida. É hoje em Roma, como outrora em Éfeso: as celebrações de Maria são
em toda a parte populares. Os romanos se aprestam a receber a definição da
Imaculada Conceição, como os efesianos acolheram a da maternidade divina de
Maria: com cânticos de júbilo e manifestações do mais vivo entusiasmo.
Eis no limiar da Basílica o
Soberano Pontífice. Circundam-no 54 Cardeais, 42 Arcebispos e 98 Bispos dos
quatro cantos do orbe cristão, duas vezes mais vasto que o antifo mundo romano.
Os Anjos da Igrejas estão presentes como testemunhas de fé de seus povos na Imaculada
Conceição. Subitamente, irrompem as vozes em tocantes e reiteradas aclamações.
O cortejo dos Bispos atravessa lentamente o longo corredor do Altar da
Confissão. Sobre a cátedra de São Pedro está sentado seu 258º sucessor.
Iniciam-se os santos
mistérios. Logo o Evangelho é anunciado e cantado nas diversas línguas do
Oriente e do Ocidente. Eis o solene momento marcado para o decreto pontifício.
Um Cardeal carregado de anos e de méritos, aproxima-se do trono: é o decano do
Sacro Colégio; feliz está ele, como outrora o velho Simeão, por ver o dia da
glória de Maria ... Em nome de toda a Igreja, dirige ele ao Vigário de Cristo
uma derradeira postulação.
O Papa, os Bispos e toda a
grande assembléia caem de joelhos; a invocação ao Espírito Santo se faz ouvir;
o sublime hino é repetido por cinqüenta mil vozes ao mesmo tempo, subindo aos
Céus como imenso concerto.
Cessado o cântico, ergue-se o
Pontífice sobre a cátedra de São Pedro; sua face é iluminada por celeste raio,
visível efusão do Espírito de Deus; e de uma voz profundamente emocionada, em
meio às lágrimas de alegria, pronuncia ele as solenes palavras que colocam a
Imaculada Conceição de Maria no número dos artigos de nossa fé:
"Declaramos - disse ele -,
pronunciamos e definimos que a doutrina de que a Bem-aventurada Virgem Maria,
no primeira instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus
Onipotente, em atenção aos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano,
foi preservada imune de toda mancha de culpa original, essa doutrina foi
revelada por Deus, e deve ser, portanto, firme e constantemente crida por todos
os fiéis".
O Cardeal decano, prostrado
segunda vez aos pés do Pontífice, suplicou-lhe então que a publicase as cartas
apostólicas contendo a definição. E como promotor da fé, acompanhado dos
protonotários apostólicos, pediu também que se lavrasse um processo verbal
desse grande ato. Ao mesmo tempo, o canhão do Castelo de Santo Angêlo e todos
os sinos da Cidade Eterna anunciavam a glorificação da Virgem Imaculada.
À noite, Roma, cheia de
ruidosas e alegres orquestras embandeirada, iluminada, coroada de inscrições e
de emblemas, foi imitada por milhares de vilas e cidades em toda a superfície
do globo.
O ano seguinte pode ser chamado
o Ano da Imaculada Conceição: quase todos os dias foram assinalados por festas
em honra da Santíssima Virgem. Em 1904, São Pio X celebrou, juntamente com toda
a Igreja Universal, com grande solenidade e regozijo, o cinqüentenário da
definição do dogma da Imaculada Conceição.
O Papa Pio XII, por sua vez,
em 1954 comemorou o primeiro centenário dessa gloriosa verdade de fé,
decretanto o Ano Santo Mariano. Celebração esta coroada pela Encíclica Ad Coeli
Reginam, na qual o mesmo Pontífice proclama a soberania da Santíssima Virgem, e
estabelece a festa anual de Nossa Senhora Rainha.
(Monsenhor João Clá Dias, EP,
Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado, Volume I, 2° Edição - Agosto
2010, p. 436 à 441) (Mons. João Clá Dias, Pequeno Ofício da Imaculada Conceição
Comentado. Artpress. São Paulo, 1997, pp. 494 à 502)
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